terça-feira, 24 de abril de 2012

Moleque da Roça - extraído do livro "Maripá de Minas e Região", de José Luiz Machado Rodrigues.

Apenas porque hoje queria falar de coisas bonitas... E bem mineiras...


"Estrada, porteira, pinguela: sentinelas de uma grande emoção".


          Velhos tempos da cumbuca de abóbora d'água madura, da cuia de cuité com feijão tropeiro, do canecão de óleo com alça e arrebite e da água fresca, na mina, tomada na folha do inhame. Da caneca esmaltada, da panela de ferro lavada com areia e cinza e do coador de flanela para o café da manhã. Café torrado e moído no terreiro e cozinha, aquecido na trempe no chão ou no fogão à lenha. Da galinha anunciando o ovo quentinho no ninho e o menino com fome, qual gambá, roubando-lhe o produto para, com um furo na casca, o ovo consumir.
          Tempos da bacia de banho, do urinol e da "casinha" do lado de fora da casa de verdade. Da mulher a lavar a roupa na bica, a alvejar no anil,a quarar no capim e depois passar tudo com o ferro de engomar "rabo-quente", ferro de brasas a soltar fagulhas e carvão na roupa branquinha. Do sabão de coalho, sabão de soda, sabão de barrigada de porco, feito no tacho de cobre, espirrado para todos os lados. Da goiabada fina, goiabada cascão, goiabada a saltar do tacho para o chão.
          Bons tempos do moinho de pedra movido a água e do angú com couve que nem se sabia chamar-se "couve à mineira". Do mingau de fubá que se comia pelas beiradas do prato, onde esfriava primeiro. Do polvilho de araruta de fabricação caseira, feito para o neném que veio com a cegonha ou parteira e hoje chora sua mamadeira.
          Tempos de farinha de mandioca para o tutu e o feijão tropeiro e do esperto tatu a chegar ao mandiocal primeiro. Da cana caiana, da garapa clarinha e do engenho rodando no frio mes de Julho, fazendo rapadura, açúcar e cachaça. Cachaça da boa, jogada na goela e o resto "pro santo", para evitar mal olhado. Engenho puxado por boi, tocado pelo menino molhado de tanger o gado na madrugada, de capim gordura florido e carregado de orvalho.
          Saudosos tempos do carro-de-boi com junta-de-coice e de guia. A canga a jungir aos pares os animais, brocha ajustada ao pescoço de cada um, canzis de roxinho ou peroba, tamoeiro ajustado ao cabeçalho. Canga feita do cerne da tajubeira que é a madeira mais apropriada. Chumaço de pau mais macio, cocões de madeira de lei e eixos de alegre e rangedoura garapa. Range a garapa e alegra-se o carreiro. É o milho chegando da roça no sabugo e espiga. A palha no cigarro dos adultos e dos velhos. Cigarro de palha e de fumo de rolo desfiado, enrolado com a técnica e o carinho do próprio fumante.
          Tempos do leite quentinho tirado da teta da vaca e misturado com o açúcar-preto do fundo da caneca. Do leite sacudido na lata ou garrafa, para fazer a manteiga gostosa. Batido na desnatadeira de um sítio mais rico dividia-se em creme, leite desnatado e soro para os porcos. Porco na ceva ou chiqueiro, atolado na lama e comendo a lavagem. Chouriço de porco defumado e tratado no calor da cozinha e a carne conservada na gordura de porco, pois geladeira não há e a gordura de coco nem tinha saído ainda da Bahia.
          Tempos de ver amassar o barro na pipa e bater a forma no chão para fazer o tijolo. Vida de oleiro, de queimar caieira, de construir telha e tijolo para a casa e o patrão.
          Gostosos tempos de descansar, de pescar no córrego com peneira e balaio, lambari, traíra, cará e cascudo. de ouvir casos, mentiras e calangos nas tardes mais frescas. de apreciar sanfona e cavaquinho no terreiro da venda ou debaixo da tolda. Da tulha e paiol repletos de arroz, milho e feijão e da despensa, onde se guardava o açúcar-preto, a carne, o queijo e a linguiça.
          Mas tinha também os terríveis tempos do medo. De um medo maior pelas histórias ouvidas de escuridão, lobisomem, saci, bicho papão, mula sem cabeça, cobra que engole um bezerro, onça pintada, cachorro doido e demais pavores da roça.
          E na madrugada fria a buscar os bezerros no pasto, o sol não nascido, um barulho acompanha o menino. A coragem de olhar para trás não lhe fazia companhia. Com medo, acelera então o passo e o barulho se torna mais rápido. Não há dúvida, é a tal cobra escolhendo o momento para o bote.  Correr é a solução e de morro abaixo nenhuma cobra alcançará o moleque. Corre e corre muito. De um salto ultrapassa o córrego e o barulho some. Com um salto o cipó se desprende da perna do menino.
          Correm os tempos e um dia a escola o chama. Para o mais novo, a garupa. No arreio ia o irmão com os pés no estribo e o ar de adulto. O galope é certo pois "eu sei o que faço". Mas a égua se espanta com a folha que mexe à beira da estrada. estaca, corrupia e volta. Os meninos são lançados ao chão e na poeira da estrada some a égua em desabalada carreira. Doutra feita a barrigueira apertada bambeia a laçada. O arreio se solta e na curva da estrada, dois moleques caem e são arrastados pelo cavalo. Risos na porta da venda e alguém, cumprindo a ordem de um anjo da guarda, salta e segura o animal. Estão salvos os meninos.
          Tempos do ácido fênico para curar o dente cariado, do licor de cacau para matar os vermes, do acônito e briônia em doses homeopáticas, como manda oproduto.
          Tempo do rádio á válvulas e da PRK-30. De olhar as pernas das meninas a pular corda e a jogar maré. De escalar muros e árvores para observar os casais de namorados e a vizinha do lado.
          Mas aí já é  o tempo do moleque da cidade que se contará depois".
FONTE: MARIPÁ DE MINAS E REGIÃO, de JOSÉ LUÍS MACHADO RODRIGUES
    

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