domingo, 14 de agosto de 2016

VISITANDO "ANARQUISTAS, GRAÇAS A DEUS".

Bom dia a todos!

         Esporadicamente não posso me furtar a comentar um pouco mais demoradamente alguns livros que me tocam profundamente, quanto à questão imigração. Principalmente aquela "onda" tão próxima à de nossos bisavós, no tempo, no espaço e nas vivências, qual seja a dos italianos. 
         Embora sua fama já me tivesse chegado à muito tempo, somente agora, recentemente, pude de fato lê-lo na íntegra. O "ANARQUISTAS, GRAÇAS À DEUS", de ZÉLIA GATTAI.
         Aconselho vivamente a todos que gostam do tema "imigração" que também o façam. Não se arrependerão. Porque o que trago para vocês é o trecho que relata específica e literalmente as questões ligadas aos porques da família GATTAI ter vindo e aos terríveis percalços de seus primeiros momentos após a decisão de fazê-lo. Ficará por sua conta, leitor, ler a delícia que é tudo o mais que não estará aqui transcrito. Boa leitura!



                                           
Capa do livro editado pelo CÍRCULO DO LIVRO. Edição integral lançada em 1979, com licença da RECORD. Foto da capa, por GIOCONDA RIZZO, traz a família GATTAI.



     "Embalado com o interesse da filha caçula pelo passado da família, papai resolveu contar mais uma vez a história de como os Gattai tinham vindo parar no Brasil. Já a havia contado repetidas vezes mas para mim seria a primeira.

                                   A COLÔNIA CECÍLIA

     A viagem da família Gattai começara, em realidade, dois anos antes de embarcarem no CITTÀ DI ROMA, em Gênova. Meu avô tivera a oportunidade de ler um livreto intitulado IL COMUNE IN RIVA AL MARE, escrito por um certo doutor Rossi - que assinava com o pseudônimo de Cárdias - misto de cientista, botânico e músico. No folheto que tanto fascinara meu avô, Cárdias idealizava a fundação de uma Colônia Socialista Experimental, num país da América Latina - não especificava qual - , uma sociedade sem leis, sem religião, sem propriedade privada, onde a família fosse constituída de forma mais humana, assegurando às mulheres os mesmos direitos civis e políticos que aos homens.
     Cárdias ainda ia mais adiante: nas últimas páginas de seu estudo, de seu plano, fazia um apelo às pessoas que estivessem de acordo com suas teorias e quisessem acompanhá-lo a qualquer parte da Terra, por mais distante, desde que pudessem levar à prática todas as experiências e as ideias, contidas no livro, para se apresentarem.
      Por fim, Francisco Arnaldo Gattai encontrava alguém com dinamismo e inteligência, disposto a tornar realidade um sonho, seu e de outros camaradas, também discípulos dos ensinamentos de Bakúnin e Krapótkin, à procura de um "caminho novo para a humanidade faminta, esfarrapada, ensanguentada, talvez esquecida de Deus".
     Buscaria uma oportunidade de encontrar-se com Cárdias. Começava a divisar perspectivas para o futuro de sua família.
     Enquanto Argía, sua mulher, amamentava o filho, leu-lhe o precioso documento. Que pensava ela desses planos? Queria saber sua opinião. Deviam aceitar o convite do doutor Giovanni Rossi? Tinham quatro filhos, um ainda a sugar o peito da mãe.
     
                 DR.GIOVANNI ROSSI OU CÁRDIAS

     Com palavras simples e acessíveis, papai nos explicou quem era o doutor Giovanni Rossi, mais conhecido por Cárdias, o homem que idealizara todo o plano da colônia experimental em terras distantes. Nascera poeta e herdara da família incontestável vocação musical. Mas, deixando de lado poesia e música, inquieto, preocupado com os problemas sociais, preferiu os estudo práticos, formando-se em agronomia, dedicando-se ao jornalismo e aos problemas sociais e filosóficos. Em suas idas a Milão, costumava hospedar-se com um parente, músico, o maestro Rossi, cuja casa era frequentada por músicos de renome, entre eles um certo Carlos Gomes, brasileiro, autor de óperas. Encontraram-se os dois, Giovanni Rossi e Carlos Gomes, na ocasião em que o músico brasileiro se entregava com entusiasmo à partitura de mais uma ópera, LO SCHIAVO, que pretendia tocar para o imperador do Brasil, cuja chegada à Milão estava sendo aguardada.
     

                                                           
Fundadores da COLÔNIA CECÍLIA. GIOVANNI ROSSI à direita. FONTE: JornalOpção.com.br
          

     Carlos Gomes falou à Giovanni Rossi de sua terra, do outro lado do mar, cheia de belezas naturais e de suas riquezas. O músico falava da grandeza de seu país com emoção e saudade.
     Cárdias o escutou fascinado! Essa era a terra que buscava, ideal para sua experiência. Não havia dúvidas. Pês de lado imediatamente o projeto ainda embrionário, de tentar o Uruguai. O Brasil o chamava.
     Entusiasmou-se ainda mais ao saber da próxima chegada de dom Pedro II a Milão. Carlos Gomes, seu protegido, o conhecia bem, e o admirava muito. Fez-lhe os maiores elogios: "um rei sábio, um pai para o nosso povo, amigos dos inventores, dos músicos, dos poetas..."
     Cheio de esperanças, Cárdias resolveu escrever uma carta ao imperador do Brasil. Não tinha nem nunca tiver admiração por imperadores, mas se aquele quisesse se interessar por seu projeto... Na longa carta explicou com detalhes seus planos a dom pedro II, pedindo que lhe permitisse provar a seriedade da experiência e solicitando terras e apoio para a ida dos idealistas para o Brasil.
     Essa carta, levada por ele mesmo, foi entregue, em mãos, ao Conde da Motta Maia, médico do imperador, no hotel onde a comitiva real se hospedava. 
     Algum tempo depois, já no Brasil, dom Pedro leu por acaso o pequeno livro de Cárdias. Interessou-se pelas ideias e pelo arrojo do autor. Mostrou o pequeno tomo ao Conde da Motta Maia que então se recordou do jovem que havia procurado o Imperador no Hotel Milão, levando-lhe uma carta. O pseudônimo era o mesmo. Dom pedro lembrou-se vagamente do fato.
     Impressionado com o apelo das últimas páginas do livro, convocando voluntários para a experiência e dando seu nome completo e endereço, Pedro II não teve dúvidas,mandou que respondessem à sua carta: felicitava-o por seu trabalho e oferecia-lhe a terra solicitada para a colônia experimental.
     Estabeleceu-se, então, uma correspondência entre o jovem idealista e o Imperador. Depois de várias démarches, Cárdias recebeu de dom Pedro II a posse de trezentos alqueires de terras, incultas e desertas, num local entre Palmeira e Santa Bárbara, no Paraná, e, ainda, a promessa de ajuda e apoio para o empreendimento.
     Tudo acertado, a doação das terras já feita, Cárdias botou mãos à obra dando início ao recrutamento dos voluntários, através dos jornais e em reuniões públicas. Frisava bem que aquela era uma aventura somente para idealistas endurecidos na luta, dispostos a realizar uma grande experiência social, sem medir sacrifícios.
   Os candidatos foram surgindo e seu número aumentou rapidamente.
    Entre os primeiros que se apresentaram estava Francisco Arnaldo Gattai, meu avô, que entrara em contacto havia muito com Cárdias. Agora, já nascera o quinto filho do casal, a menina Hiena. Com a mulher, estudara a situação: não seria arriscado partirem para a aventura, carregando cinco crianças?
      Argia Fagnoni Gattai, minha avó, não era mulher de recuar diante de obstáculos. Aos trinta nos de idade, carregada de filhos, não teve medo de enfrentar o desconhecido. Amava o marido, sabia o que representava para ele aquela viagem. Não iria desapontá-lo. Costumava amamentar os filhos até os seus dois anos de idade - esse era o intervalo matemático entre um filho e outro - , criando-os fortes e sadios. Jamais lhe faltara leite; por Hiena não precisavam temer. A mãe lhe garantiria a alimentação, pelo menos durante a travessia marítima.
     Entre os cento e cinquenta - talvez um pouco mais - pioneiros que integravam o grupo, havia gente de várias profissões e classes sociais: médicos, engenheiros, artistas, professores, camponeses e operários - em meio a esses últimos, meu avô. Mas havia também outros que conseguiram se infiltrar, alguns criminosos condenados por diversos delitos.

                            COMEÇO DE VIAGEM

     O grupo de idealistas embarcou no navio CITTÀ DI ROMA em fevereiro de 1890; o regime imperial no Brasil havia sido derrubado a 15 de novembro de 1889. Dom Pedro II fora deposto e desterrado, a República proclamada. Os fundadores da Colônia Socialista Experimental não podiam mais contar com a ajuda e o apoio prometidos pelo imperador. Contariam apenas com seus próprios esforços, com a vontade de vencer, mas nada os faria recuar.
     No porão do CITTÀ DI ROMA, junto às caldeiras, viram-se amontoados os pioneiros que, em breve, estariam integrando uma comunidade de princípios puros: a "Colônia Cecília". Iam cheios de esperanças, suportariam corajosamente as condições infames da viagem.
     Uma luz artificial, fraca, era tudo o que havia para iluminar o porão; nem a mais leve brisa do mar chegava até ali para atenuar o calor sufocante.
     As crianças, inquietas, inconformadas com a escura prisão, tentavam a toda hora, burlando a vigilância dos mais velhos, subir a escada escorregadia e íngreme que as conduziria ao sol.
     No segundo dia de viagem já não havia onde pisar. Poças de vômito espalhavam-se por todo lado. O navio jogava demais e a maioria dos passageiros enjoava. Argia Gattai estava entre os que mais sofriam. Não conseguia alimentar-se, vomitava o que já não trazia no estômago. Com o correr dos dias a situação dos Gattai foi se agravando grudada aos peitos da mãe  ora num, ora noutro -, Hiena só os largava para reclamar, chorando desesperadamente. Onde estariam aquelas tetas fartas, transbordantes? Elas iam diminuindo, murchando, cada vez menor a quantidade de leite para saciar sua fome... Ninguém dormia com o pranto dolorosa da menina mas ninguém reclamava. 
     Um médico do grupo chegou-se, aproximou-se e sem examinar a criança diagnosticou: fome.
     E se conseguissem um pouco de leite em cima? O médico desaconselhou: o leite de bordo não era bom, nas condições de fraqueza em que a criança se encontrava poderia provocar-lhe diarreia. A única providência a tomar, urgentemente, era conseguir com o comandante do navio permissão para remover mãe e filha para cima, onde pudessem respirar ar puro. Talvez, quem sabe, seu leite voltasse?
     Estirada numa espreguiçadeira, na popa do navio, com a criança grudada ao peito - perninhas e braços finos, olheiras fundas -, a mulher passava o dia. Havia quanto tempo viajavam? Quando chegariam? Deviam ter decorrido muitos dias desde a partida de Gênova. Inda bem que as quatro crianças continuavam com saúde. Guerrando, o mais velho dos filhos, beirando os dez anos, fora encarregado de cuidar dos menores, o pai ocupado com a mulher e a filha doente.
     À noite, a mãe e a menina voltavam para a fornalha e o choro recomeçava. Hiena já não mamava com tanta avidez. P leite quase secara, sugava em vão.
     Tio Guerrando jamais se esquecera dos tormentos da terrível viagem; quando era ele a narrar a odisseia dos pais, o fazia com tanto sentimento que, sem me dar conta, comparei aquele porão quente e escuro ao Inferno de Dante.

              SERVIÇO DE IMIGRAÇÃO E SAÚDE

     No porto de Santos formou-se a maior confusão na hora do desembarque. Homens para um lado, mulheres para o outro. Em salas separadas os imigrantes foram despidos, as roupas do corpo e as que traziam nas trouxas levadas para a costumeira desinfecção. Ali permaneceram durante horas a fio, nus, a espera de que lhes devolvessem os pertences, que os liberassem.
     Ninguém reclamava, nem havia a quem reclamar. O jeito era esperar com paciência e resignação.
     Por fim, depois de infinita demora, roupas e pertences foram devolvidos, devidamente carimbados pelo posto. Apertados em seus trajes encolhidos pelo banho de desinfecção, cheirando a remédio, amarfanhados, os imigrantes, conduzidos em fila, passaram pelo departamento médico, numa última vistoria antes de serem liberados.
     Dali mesmo, foram encaminhados e embarcados novamente num pequeno navio que os conduziria ao Paraná. (Tio Guerrando não estava muito certo do novo porto de desembarque, mas achava que era o de Paranaguá)
     O estado da menina não melhorara, o leite materno acabou inteiramente, deram-lhe então leite de vaca. Como prevenira o médico, manifestou-se em seguida violenta diarreia acompanhada de vômitos.
     Os pioneiros partiram rumo às terras que os esperavam, a família Gattai permaneceu na cidade. Companheiros compadecidos ofereceram-se para levar as quatro crianças; facilitaria a vida dos pais, às voltas com a menina doente.
     - Ficaremos juntos. Não suportaríamos a ausência de nossos filhos, morreríamos de preocupação... - explicou nono Gattai, agradecendo o oferecimento.
     E lá ficaram eles, naquele porto estranho, buscando por todos os meios salvar a vida da filha.

                   BANDEIRA VERMELHA E PRETA

     Num carroção de quatro rodas, com suas trouxas de roupas e alguns pertences, passou a família Gattai por Santa Bárbara: marido, mulher e quatro filhos. 
     Ao verem passar a carroça, algumas crianças gritaram chamando pelas mães: "Venham ver que estão chegando mais ciganos!" Havia pouco mais de um mês passara por lá grande leva de homens, nas mesmas condições que esses. Ciganos, certamente, pensaram os moradores do pequeno vilarejo, trancando as portas das modestas casas cobertas de folhas de zinco, no medo de serem roubados.
     Ao alto de uma colina, por entre os pinheirais, divisava-se, hastada no alto de uma palmeira, enorme bandeira vermelha e preta. Era a bandeira da Colônia Cecília, saudando a chegada dos novos pioneiros.
     Ao divisar a bandeira da Colônia, nono Gattai olhou mais abaixo e exclamou: "Lá estão eles!" Ali estava o acampamento: um grande barracão erguido junto a um córrego, pequenas barracas em construção, homens movimentando-se para cima e para baixo, um pedaço de terra já limpa para o cultivo ao lado de um pequeno bosque.
     Dona Argia voltou a cabeça em direção ao dedo estirado do marido. Seus olhos distantes não divisaram nada. Sua alegria, sua esperança, seu entusiasmo ainda permaneciam lá longe, enterrados ao lado do corpinho da filha. Durante toda a viagem não dera uma única palavra, nem para amaldiçoar, nem para acusar. Não derramou uma única lágrima, completamente apática. O marido, disfarçando a tristeza pela morte da filha, procurava distrair a mulher chamando-lhe a atenção para mil e uma coisas durante a longa e dura viagem pela estrada. Sem obter resultados.
     Avistando a carroça da família Gattai, os homens do acampamento partiram ao seu encontro. Os Gattai foram alojados provisoriamente no barracão construído pela primeira leva. À chegada todos trabalharam para construir o galpão onde se abrigarem. Nos dias que se seguiram cada família tratou de construir sua própria morada. O barracão ficara para depósito e emergência como aquela.
     As quatro crianças, ao se verem livres da incômoda carroça, correram em disparada para o regato de águas cristalinas. Ninguém as impediu de se banharem de roupa e tudo. estavam necessitadas de ar puro, de água e, sobretudo, de liberdade.

                                                 
ANGELINA DA COL e ERNESTO GATTAI, imigrantes italianos, pais de ZÉLIA GATTAI. Vieram crianças da Itália.
     
                            FIM DA COLÔNIA CECÍLIA

     -E foi assim que a família GATTAI chegou ao Brasil. - Com essa frase papai dava por encerrada sua história.
     Estávamos, no entanto, tão impressionados com o relato, que desejávamos ouvir mais. Papai, percebendo nossa emoção, buscou desanuviar o ambiente:
     - Vocês estão vendo? Sabiam que eram tão importantes? Pois, para que vocês estivessem aqui hoje, foi preciso a intervenção do filósofo Giovanni Rossi, do maestro Carlos Gomes e de dom Pedro II, imperador do Brasil. Que tal? - riu do nosso espanto.
     Mas, eu não estava ainda satisfeita, queria saber mais. O que havia acontecido á Colônia Cecília?
     - Manteve-se ainda durante alguns anos, com grandes esforços e muito trabalho, mas resultou em nada, não pode manter-se.
     Era difícil a papai explicar detalhes de fatos que ele mesmo ignorava. Titio Guerrando, que vivera esses episódios e ainda se lembrava de muita coisa, também pouco sabia sobre os motivos que levaram ao fracasso da experiência. de positivo mesmo, sabia que muita gente desistira ao aparecerem as primeiras dificuldades. Outros idealistas, que foram chegando no correr do tempo para se incorporar à Colônia, tampouco resistiram ás péssimas condições nela reinantes. Alguns mais teimosos tiveram que arranjar emprego fora das terras, nas construções de estradas de ferro, para não morrer de fome. Mas tudo culminou com a intimação das autoridades republicanas que, não estando de acordo com a doação feita pelo imperador deposto, exigiam dos colonos que, ou comprassem as terras que ocupavam e pagassem os impostos atrasados ou as abandonassem. Havia ainda  aversão anticlerical de tio Gerrando: ele contava que, bem próximo à Colônia, fora construída uma igreja católica com o objetivo exclusivo de hostilizar e boicotar os anarquistas, e que, já na época da colheita, o padre vizinho soltou suas vacas, que rapidamente destruíram todas as plantações, liquidando assim as últimas esperanças dos remanescentes da Colônia Cecília.
     Os Gattai lá permaneceram dois anos, mais ou menos. O último a abandonar o barco, tempos depois, foi o comandante Cárdias, ao ver-se impossibilitado de prosseguir sozinho na sua experiência.
     Aprendi muita coisa sobre a Colônia Cecília, mais com tio Guerrando que com papai. Tio Guerrando, menino crescido durante a aventura, lembrava-se de detalhes vividos pela família.
     Foi no livro do escritor Afonso Schmidt, COLÔNIA CECÍLIA, publicado em 1942 em São Paulo, que encontrei algumas respostas às minhas indagações, inteirei-me da extensão da aventura anarquista. A família Gattai é citada entre os sonhadores que acompanharam o doutor Giovanni Rossi ao Brasil, no livro de Schmidt: "Na casa dos Gattai ardia fogo, uma fumaça azul saia alegremente pela única janela".


                                                
JOSEFINA e EUGÊNIO DaCOL, avós maternos de ZÉLIA GATTAI, também imigrantes italianos.

                              PARECIDA MAS DIFERENTE

     Papai terminara sua narrativa. Nos voltamos em seguida para nono Gênio, queríamos que nos contasse também como ele e sua família haviam chegado ao Brasil.
     -Hoje não- respondeu nono-, já é muito tarde, passei de minha hora de dormir. Amanhã eu conto. Buona notte.
     Arrisquei ainda uma pergunta antes que ele saísse da sala:
     - O senhor também era anarquista, nono? 
     - Não, não era anarquista nem monarquista. Nossa família não entendia nada da política. Éramos gente de igreja, todos católicos. Nossa história é muito parecida com a dos Gattai, mas completamente diferente...
     Caímos na gargalhada, papai foi quem mais riu. Como podia ser isso: parecida e diferente?
     Um pouco ressabiado com a reação causada por sua afirmativa, nono resolveu roubar mais uns minutos de seu precioso sono e justificou-se em poucas palavras:
     -Nós também viajamos com cinco filhos menores e atravessamos o oceano no porão de um navio. Nós também perdemos uma menina no Brasil, a mais nova dos cinco. Era Carolina, tinha pouco mais de dois anos quando morreu. - Fez uma pausa, continuou, de cabeça baixa: - Só que a nossa morreu por falta de recursos...
     Papai esboçou um leve sorriso ao ouvir a afirmação do sogro, para quem era muito duro admitir e ainda mais difícil pronunciar a frase: "morreu de fome!".
     Soubemos tudo sobre a viagem da família DaCol no dia seguinte, quando nono cumpriu a promessa e nos contou a história.
     Vovô viera da Itália com toda a família, contratado como colono para colher café numa fazenda em Cândido Mota, em São Paulo. Embarcaram em G^nova com destino a Santos, por volta de 1894: Eugênio DaCol, o pai; Josefina Pierobon Dalla Costa DaCol, a mãe; Ângelo (Angelim), dez anos; Marguerita, oito anos; Luís (Gígio), seis; Ângela (Angelina), quatro anos, e Carolina, dois anos.
     Dona Pina passou a viagem toda rezando, pedindo a Deus que permitisse chegarem com vida em terra. Tinha verdadeiro pavor de que um dos seus pudesse morrer em alto-mar e fosse atirado aos peixes.Carolina ressentiu-se muito da viagem, estranhou a alimentação pesada do navio, adoeceu, mas desembarcaram todos vivos no porto de Santos.
     A família fora contratada por intermédio de compatriotas do Cadore, chegados antes ao Brasil. Diziam viver satisfeitos aqui e entusiasmavam os de lá através de cartas tentadoras: "Venham! O Brasil é a terra do futuro, a terra da "cucagna"... pagam  bom dinheiro aos colonos, facilitam a viagem..."
     Com dos Da Col, no mesmo navio, viajaram outras famílias da região, todos na mesma esperança de vida melhor nesse país promissor. Viajaram já contratados, a subsistência garantida.
     Em Santos, eram aguardados por gente da fazenda, para a qual foram transportados, comprimidos como gado num vagão de carga.
     Ao chegar à fazenda, Eugênio Da Col deu-se conta, em seguida, de que não existia ali aquela "cucagna", aquela fartura tão propalada. Tudo que ele idealizara não passara de fantasia;as informações recebidas não correspondiam à realidade: o que havia, isto sim, era trabalho árduo e estafante, começando antes do nascer do sol; homens e crianças cumpriam o mesmo horário de serviço. Colhiam café debaixo de sol ardente, os três filhos mais velhos os acompanhando, sob a vigilância de um capataz odioso. Vivendo em condições precárias, ganhavam o suficiente para não morrer de fome.
     A escravidão já fora abolida no Brasil, havia tempos, mas nas fazendas de café seu ranço perdurava.
     Notificados, certa vez, de que deviam reunir-se, à hora do almoço, para não perder tempo de trabalho, junto à uma frondosa árvore, ao chegar ao local marcado para o encontro os colonos se depararam com um quadro deprimente: um trabalhador negro amarrado à árvore. À princípio Eugênio Da Col não entendeu nada do que estava acontecendo nem do que ia acontecer, até divisar  o capataz que vinha se chegando, chicote na mão. Seria possível, uma coisa daquelas? Tinham sido convocados, então, para assistir ao espancamento do homem? Não houve explicações. Para que? Estava claro: os novatos deviam aprender como se comportar, quem não andasse na linha, não obedecesse cegamente ao capataz, receberia a mesma recompensa que o negro ia receber. Um exemplo para não ser esquecido.
     O negro amarrado, suando, esperava a punição que não devia tardar; todos o fitavam, calados.
     De repente, o capataz levantou o braço, a larga tira de couro no ar, pronta para o castigo. Então era aquilo mesmo? Revoltado, cego de indignação, o jovem colono Eugênio da Col não resistiu: não seria ele quem presenciaria impassível ato tão covarde e selvagem. Impossível conter-se!
     Com um rápido salto, atirou-se sobre o carrasco, arrebatando-lhe o látego das mãos. Apanhado de surpresa, diante da ousadia do italiano, perplexo, o capataz acovardou-se. O chicote, sua arma, sua defesa a garantir-lhe a valentia, estava em poder do "carcamano"; valeria a pena reagir? Revoltado, fora de si, esbravejando contra o capataz em seu dialeto dos Montes Dolomitas, o rebelde pedia aos companheiros que se unissem para defender o negro. Todos o miravam calados. Será que não compreendiam suas palavras, seus gestos? Certamente sim, mas ninguém se atrevia a tomar uma atitude frontal de revolta. Católico convicto, ele fazia o que lhe ditava o coração, o que lhe aconselhavam os princípios cristãos...
     De repente, como num passe de mágica, o negro viu-se livre das cordas que o prendiam à árvore. O capataz apavorou-se. Quem teria desatado os nós? Quem teria? O topetudo não fora, estava ali em sua frente, gesticulando, gritando frases incompreensíveis, ameaçador, de chicote em punho... O melhor era desaparecer o quanto antes, rapidamente: "esses brutos poderiam reagir contra ele. A prudência mandava não facilitar".
     Nessa mesma tarde, a família Da Col foi posta na estrada, porteira trancada para "esses rebeldes imundos". estavam despedidos. Nem pagaram o que lhes deviam. "Precisavam ressarcir-se dos custos do transporte de Santos até a fazenda..." E fim...
     Pela estrada deserta e infinita, seguiu a família, levando as trouxas de roupas e alguns pertences que puderam carregar, além da honradez, da coragem e da fé em Deus.
     Tinham endereço de conterrâneos na capital de São Paulo, onde chegaram depois de arrastar-se numa longa e triste caminhada, passando fome, subsistindo devido à ajuda de corações generosos. Carolina, debilitada desde a viagem de navio, precisava ser carregada o tempo todo, ora no colo de um, ora no de outro. Seu estômago delicado não suportava o angu de farinha de mandioca com água, alimento básico - muitas vezes único - que os mantinha em pé.
     - Carolina morreu logo que chegamos à capital. Deus nos ajudou porque nona Pina jamais se conformaria em enterrar seu anjinho de olhos azuis à beira de uma estrada deserta - concluiu nono Gênio; chorava ao recordar-se.
     Os Da Col passaram a a viver no Brás, onde já moravam velhos amigos cadorinos, operários, ex-colonos. Um deles, vindo ao Brasil em busca de fortuna, como os outros, a encontrara: Natal Boni, dono de uma serraria no Belém. Deu emprego ao conterrâneo e amigo de infância; passou a ser patrão do bom operário Eugênio, excelente carpinteiro. A amizade de infância ficou para trás. Patrão rico esquece o passado.
     Essa foi a história que nono Gênio nos contou, de sua família. Parecida com a da família Gattai, mas completamente diferente.


                                       
O casal Da Col Gattai com seus filhos, entre os quais, Zélia. 
     
       
     E então é isso, leitores queridos. Como bem disse "nono Gênio", nossa história é muito parecida com a deles. Mas completamente diferente. Ou não é?