“O exílio é o momento em que o homem se dá conta, freqüentemente com dor, do apego quase carnal que tem por seu território (país, terra natal, pátria) e por seu grupo (família, amigos, comunidade, nação) de origem.
Esse espaço, que nos modelou, e que cada um de nós, por sua vez, modela à sua feição, é também o espaço de nostalgia, da saudade do retorno. A palavra enuncia ao mesmo tempo a causa e o remédio. Na ilusão de que o remédio (o retorno) bastará para curar o mal suprimindo-lhe a causa (o exílio), a saudade enceta um patético trabalho de memorização, reminiscência e imaginação. Em relação aos locais escolhidos para esse fim, desencadeia um autêntico processo de sacralização e, dessa forma, coloca o espaço e o tempo em um mesmo plano, dando margem a se acreditar que a abolição de um acarreta a abolição do outro.
Mas nem todos os exílios se assemelham. Há os longos e os menos longos, os definitivos e os provisórios. Alguns são impostos (banimento, deportação, fuga); outros, desejados - pelo menos aparentemente. O término de alguns só depende do próprio exilado, enquanto o outro se subordina a decisões alheias. Tampouco a saudade é sempre a mesma. A do exilado político não se iguala à do imigrante, a do trabalhador emigrado não coincide com a do colono. Ela varia em função da relação que o exilado mantém com a sua terra natal, de um lado, e com a terra que o acolheu, do outro.
Essa dupla relação modifica-se com o tempo, pois este influi na sensação dos exilados de pertencerem a qualquer lugar. O local e o entorno, o aqui e o lá, o ontem e o hoje - a consciência de todas essas relações e de todas essas diferenças modula a inquietação e a saudade.
No fundo, a saudade expressa bem o que é o exílio: a busca de uma impossível ubiquidade, o sonho de estar aqui e acolá ao mesmo tempo. A saudade alimenta-se de dualismos: duas vidas simultâneas, vividas em dois níveis - o da realidade e o desejo. A realidade de uma vida ativa e presente, material, imediata, cotidiana; e o desejo a uma vida absolutamente interior, secreta, composta de lembranças e da imaginação daquilo que não é mais, mas que poderá voltar a ser - uma vida sobreposta à vida real.
Embora o exílio não cesse de transformá-la, de embelezá-la, a terra da saudade não deixa de ser uma terra conhecida, já experimentada e vivida: a terra natal. Desse ponto de vista, Ulisses pode ser considerado o protótipo do exilado errante em busca do seu país, e a Odisséia, o relato desse exílio e de seu retorno, ou seja, a cura da saudade. Tudo se passa como se o retorno a Ítaca compensasse totalmente a partida ocorrida 10 anos antes. Mas tal retorno não se concretiza, nem tal saudade se esfuma tão fácil e mecanicamente quanto se poderia supor.
Ulisses não navega por navegar, por se sentir atraído pelo mar ou seduzido pela imensidão. Ao contrário do herói de Dante, que transpõe as colunas de Hércules para se aventurar no oceano em busca de novos horizontes, o de Homero é um imigrante como outro qualquer, que só deseja voltar para casa, após passar pela prova da ausência - o que seria enunciado mais tarde, de uma forma prosaica, por outro exilado celebre, Victor Hugo: “Não se pode viver sem pão, nem se pode viver sem pátria”. Com a única diferença que Ulisses não cessa, durante seu périplo, de lutar pelo retorno, de enfrentar obstáculos cujas sucessivas superações, uma a uma, o deixam cada vez mais próximo da sua meta. Além disso, pretende voltar à sua terra na condição de soberano para restaurar a situação anterior, como se 10 anos de ausência nada representassem.
No retorno de Ulisses não há decepção - a decepção que quase sempre substitui a saudade quando se constata que o remédio tão esperado não basta para curar o mal. Pois aquele que volta não é mais o mesmo que partiu, e os lugares que revê jamais estão tal como ele se recorda. O retorno, para o exilado, é um retorno a si mesmo, ao tempo anterior ao exílio - é retrospectiva, retrospecção. Possível no espaço, o retorno é impossível no tempo. Permite todas as esperanças, mas é fonte de decepção e frustração.
Ausente do Ulisses de Homero, a decepção subjaz em todos os Ulisses modernos, como demonstra o de Nikos Kazantzakis. Sua Odisséia começa onde termina a de Homero. Assim que se instala confortavelmente em seu palácio, Ulisses sente invadir-lhe a inquietação. Entediado, começa a sonhar com a nova partida, com as terras maravilhosas que visitou e desprezou. Assim, o partir e o voltar remetem ininterruptamente um ao outro. Há o prazer de ter retornado, mas há sobretudo o prazer de retornar sempre - o que exige partir eternamente. Para a saudade não se transformar em decepção, é preciso manter a expectativa do retorno.”
(Escrito por Abdelmalek Sayad, sociólogo argelino, in “O Correio da Unesco”, Brasil, ano 24, nr. 12, Dezembro de 1996)
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